“Se há um princípio fundamental subjacente à Primeira Emenda é que o governo não pode proibir a expressão de uma ideia simplesmente porque a sociedade considera essa ideia ofensiva ou desagradável.” — William J. Brennan, juiz da Suprema Corte

Quando Sol Goldstein soube que o Partido Nacional Socialista (Nazista) dos Estados Unidos planejava marchar em Skokie, Illinois, em 1977, ele ficou indignado.

Sol era sobrevivente do Holocausto, um de aproximadamente 6 mil que viviam em Skokie, bairro residencial tranquilo de Chicago conhecido por sua grande população judaica. Muitos moradores, como Goldstein, haviam visto familiares torturados e mortos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, e a ideia de manifestantes violentos adornados com a suástica em sua cidade era demais para suportar.

Dois homens de uniforme de pé atrás de homem sentado falando para microfones (© AP Images)
O líder nazista Frank Collin anuncia em coletiva de imprensa de 1977 a intenção de seu partido marchar por bairros judeus em Skokie, Illinois (© AP Images)

Goldstein organizou a comunidade judaica para impedir que Prefeitura autorizasse a manifestação dos nazistas. Ele processou o Partido Nacional Socialista dos Estados Unidos e foi uma das principais testemunhas na batalha judicial que se seguiu entre o grupo nazista e a cidade. No entanto, apesar do testemunho de Goldstein sobre como era a vida no campo de concentração e quanto ele seria afetado por ver os símbolos da Alemanha nazista desfilando em sua cidade, a comunidade judaica de Skokie não conseguiu impedir que a Prefeitura autorizasse a manifestação.

Em diversas decisões judiciais que acabaram chegando à Suprema Corte dos EUA, os tribunais decidiram a favor dos nazistas. Os juízes da Suprema Corte mantiveram a decisão de que os socialistas nacionais tinham o direito, protegido pela Constituição, de realizar uma manifestação e exibir suásticas e outros símbolos.

Os cidadãos de Skokie ficaram devastados. Eles achavam que o governo existia para protegê-los dos nazistas e fanáticos. Como isso podia ter acontecido?

“O Congresso não legislará (…) cerceando a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito das pessoas de se reunir pacificamente …” — Constituição dos EUA, Primeira Emenda (1791)

Primeira Emenda

De acordo com a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, o governo federal não pode impedir alguém de falar nem punir alguém por algo que disse. Foi originalmente criada para proteger o discurso político e impedir o governo de fechar jornais que manifestassem dissidência; no entanto, com o tempo, a interpretação de discurso dada pela Suprema Corte passou a incluir marchas, protestos e outras formas de expressão. O conceito também foi ampliado e passou a cobrir discurso de ódio e conduta ofensiva. Isso significa que não importa o quão ofensivas possam ser as ideias de alguém ou o quão perturbadoras possam ser as imagens utilizadas, a Primeira Emenda protege a possibilidade de expressão.

É por isso que a Prefeitura de Skokie teve de autorizar a marcha dos nazistas. Negar seu direito de se reunir teria sido o equivalente de impedi-los de falar. É também por isso que hoje mensagens de ódio e organizações radicais continuam legais.

Controle do poder do governo

Os fundadores dos Estados Unidos desconfiavam do poder do governo. A Primeira Emenda foi ratificada logo depois da Constituição para atender à preocupação popular de que o governo pudesse suprimir a dissidência política.

Homem acena para multidão (© AP Images)
Martin Luther King Jr. acena para a multidão durante seu discurso “Eu Tenho um Sonho”, em 28 de agosto de 1963, durante a Marcha para Washington (© AP Images)

“A liberdade de expressão é um dos principais pilares de um governo livre”, disse Benjamin Franklin, um dos fundadores da nação e dos autores da Constituição. “Quando esse apoio é tirado, a Constituição de uma sociedade livre é dissolvida.”

Quando se começa a tentar decidir o que é discurso permitido e o que não é, a pergunta passa a ser “Quem é o censor?”, explica Burton Caine, professor de Direito da Universidade de Temple na Filadélfia. O poder do governo de punir as pessoas pelo que elas dizem “tem sido usado pelos governos ao longo da História, no mundo todo”, para suprimir dissidentes e prejudicar minorias políticas. Os fundadores nos protegeram contra isso, conclui Caine.

A única maneira de proteger verdadeiramente a liberdade de expressão é protegê-la para todos, mesmo aqueles cujas opiniões são intoleráveis para muitos outros. Dessa maneira, não importa quem esteja no poder, os direitos de liberdade de expressão de minorias e manifestantes políticos não podem ser reprimidos.

Essa proteção nunca foi mais evidente do que durante a era dos direitos civis, quando os tribunais mantiveram os direitos dos manifestantes, como Martin Luther King Jr., de marchar contra a injustiça da segregação racial. Apesar da oposição dos governos locais, os discursos, as manifestações em restaurantes e os protestos não violentos de Luther King tiveram permissão para continuar porque a Primeira Emenda restringia o que esses governos podiam fazer para detê-lo. Em muitos casos, antecipando a lógica que permitiria aos nazistas marchar em Skokie, os tribunais determinaram que as cidades não poderiam negar aos manifestantes de direitos civis o direito de marchar somente porque não gostavam do que os ativistas tinham a dizer.

Das ruas para a web

Hoje em dia, muitas manifestações racistas e ofensivas ocorrem na internet. Sites de mídias sociais como Twitter e Facebook se esforçam para lidar com o discurso de ódio on-line, e grupos como o Centro de Leis contra a Pobreza do Sul*, grupo de defesa dos direitos civis, e a organização Defensores dos Muçulmanos* passaram anos documentando e combatendo o discurso de ódio e o racismo on-line.

No entanto, assim como em Skokie, os tribunais têm repetidamente protegido os direitos daqueles que fazem comentários de ódio e postam imagens racistas, desde que seu discurso não ultrapasse o limite e se transforme em ameaças de violência diretas e plausíveis.

Discurso que resulte em violência não é protegido

Apesar da Primeira Emenda, os tribunais não protegem todos os discursos. O teste é se existe uma possibilidade razoável de o discurso resultar em violência ou outra ação ilegal. Basicamente, os tribunais têm determinado que, se alguém fizer uma ameaça direta contra outra pessoa ou incitar um grupo a cometer violência iminente, o discurso não é protegido e o governo pode intervir.

Pessoas montam palco e arrumam bandeiras (© AP Images/Kathy Willens)
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Membros da Ku Klux Klan se preparam para manifestação em 1993. O evento quase foi cancelado até um tribunal federal determinar que o grupo tinha o direito de se reunir (© AP Images)

.Assim, por exemplo, quando o líder da Ku Klux Klan, organização racista branca, discursou em Ohio pedindo vingança contra negros, judeus e o governo dos EUA, a Suprema Corte concluiu que ele não poderia ser preso por incitar a violência porque não estava ameaçando ninguém especificamente.

Mas quando a Klan ameaçou uma família negra específica na Virgínia, a Suprema Corte considerou que a Primeira Emenda não protegia suas ações e que o governo poderia processar as partes infratoras.

Como disse certa vez o juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes Jr.: “A proteção mais rigorosa da liberdade de expressão não protegeria um homem que falsamente gritasse ‘fogo’ em um teatro e causasse pânico.” O ponto de Holmes: Quando você cria um “perigo claro e presente” a outros por meio do seu discurso, esse discurso não é protegido.

Definir o limite “nunca foi e nunca será fácil”, disse John Shuford, professor de Resolução de Conflitos da Universidade Estadual de Portland, no Oregon, e fundador do Centro de Pesquisa de Políticas de Estudos de Ódio. “Temos de aceitar o orador às vezes desagradável e a premissa às vezes desagradável de que [as pessoas] falam coisas perniciosas e provocadoras”, disse. Mas também reconhecer que quando essas pessoas ultrapassam os limites, quando “avançam muito”, elas violam a lei.

Combate ao discurso ofensivo

A pergunta, diz Shuford, é: “Qual nossa melhor abordagem para lidar com as atividades e os discursos controversos, talvez ofensivos, talvez provocadores, mas que não necessariamente ultrapassam o limite da conduta ilegal?”

Prédio da Suprema Corte com grupos de pessoas na frente (© AP Images/Susan Walsh)
Manifestantes dos dois lados do debate sobre o aborto se manifestam do lado de fora da Suprema Corte dos EUA em 2016, quando o tribunal examinou a legalidade de uma lei de aborto do Texas (© AP Images)

A resposta é um debate vigoroso e a noção de que a melhor maneira de combater as ideias das quais você discorda é contrapondo as suas.

Nessa competição de ideias, o governo não criminaliza o discurso discordante, mas, ao contrário, garante que todos possam falar e confrontar as ideias que consideram ofensivas. Ao defender direitos individuais, essa abordagem garante que todos possam expressar suas opiniões, independentemente de quem controla as alavancas do poder.

A comunidade de Skokie não pôde negar aos nazistas a autorização para marchar, mas pôde garantir que os nazistas não fossem as únicas vocês ouvidas. A cidade de Skokie trabalhou com a comunidade judaica para construir um museu do Holocausto destinado a homenagear aqueles que haviam morrido e garantir que as pessoas sempre se lembrassem do que ocorre quando uma ideologia racista não é combatida.

* site em inglês